Por: Msc. Fernando Maurício da Silva (UNISUL)
Prefácio: redigi o pequeno texto abaixo com o intuito de exemplificar o que seria uma fenomenologia da doença e do bem-estar quando pensada a partir do próprio ser. Evidentemente muito seria ainda necessário para se validar esta contribuição como uma descrição fenomenológica pormenorizada. O intuito é contribuir com o curso de Naturologia e com o grupo de estudos sobre Fenomenologia que tenho orientado na Universidade do Sul de Santa Catarina. Agradeço a todos aqueles alunos que têm instigado minhas reflexões.
O texto a seguir é uma reflexão que somente pode ser compreendida enquanto autorizada por aquela tradição pós-moderna que procura retomar o valor positivo de certos eventos privativos, notadamente a fenomenologia, aqui aplicada à descrição da doença e do bem-estar. Antes de se perguntar se faz sentido insistir em falar de “doença” e “saúde”, bem como se tal diferença é atualmente sustentável, deve-se explicitar como estas noções ainda persistem, ou seja, a partir de que escopo ontológico se deixam ainda apreender.
Afastando toda pressuposição patológica em seu sentido empirista e recuperando seu solo primordial na existência vivida, a doença é aquilo que nos remete a nossa finitude, o corte de nossos projetos cotidianos, deixando explícito para nós mesmos nosso ser aí enquanto projeto. Isto significa que a doença não é vivida existencialmente como causa de sofrimento ou impedimento, como vivência de sofrimento regido por uma moral ou natureza negativa ou privativa, tampouco originalmente como sinal ou presságio de morte. Adoecer é fazer diretamente a experiência de estar vivo e das variações da vida como possibilidades que em mim podem ser experimentadas propriamente. Se um sofrimento não for experimentado como corte do sentido que a vida adquiriu para alguém em seu ser, então também não será experimentado como negativo, privativo e sintomático. Portanto, “doença” designa a interpretação que entifica ou coisifica o sentido da vida de alguém enquanto continuidade projetada ao futuro.
Em nossa época, a morte também adquiriu a possibilidade de se entificar enquanto morte no hospital, no que diz respeito à substituição acerca do morrer no lar. É no hospital que se procura oferecer meios e instrumentos para tornar a morte à causa do rompimento de um continum e não uma ruptura vivida como experiência da vida como possível descontínuo. O ideal de uma casa de hospitalidades transforma-se modernamente no Hospital, conforme descreve Foucault, agora entendido como indústria da saúde, onde o corpo e a mortalidade são desumanizados. E se são desumanizados não é porque se esquece o homem, mas antes se esquece que o homem (antropos) já se tornara uma vaga lembrança do antigo projeto grego. A doença é aquilo a ser tratado, cuidado, curado, mas nunca se pergunta como estes olhos para a cura são a perspectiva de quem vê os fenômenos da descontinuidade da vida como doentios. O moribundo é o objeto que expõe a morte como efeito futuro, mas nesta interpretação “objetiva”, pretensiosamente científica, exprime-se que para a impossibilidade de tratá-lo ou curá-lo só nos resta à simpatia ao sofrimento do outro. A idéia de médico, em seu sentido moderno, somente é possível quando simultaneamente o homem se sente incapaz de lidar com o sofrimento do outro e incapaz de lidar com o incomodo próprio diante a doença. O sofrimento do outro e o meu se encontram, mas neste encontro ele mesmo é vivido como mais um sofrimento, que então passa a ser moralizado como ética médica. E nunca se chega a compreender a existência do sofrimento, tanto quanto o prazer permanece sendo um mito da dádiva da natureza. Conseqüentemente, as divisões na “área da saúde” (entre aqueles que lidam com a patologia física em seus mais variados sentidos e aqueles que lidam com as psicopatologias) a despeito das dificuldades de distinção entre os diversos tipos de medicina e as demais formas de terapia, origina-se de uma separação mais fundamental: entre os indivíduos cujo desejo de lidar com o outro se dirige ao objeto patológico e aqueles que se dirigem ao sujeito do sofrimento. Por exemplo, vemos tal distinção operar dentro do hospital entre a medicina e a enfermagem, neste caso sendo uma distinção menos visível em função da noção de cuidado hospitalar que inclui tanto o trabalho do médico clínico, o observador sobre o indivíduo sob observação, e o cuidado da enfermagem, que se dedica ao enfermo, prestando assistência, em todo caso, hospitalar. Esquece-se a cada vez que a separação entre objeto e sujeito do sofrimento consiste em um problema muito mais amplo em toda esfera da “área da saúde”. Pois sofrer não está para a doença de modo causal e nem de forma proporcional à saúde, igualmente não causal e não proporcional ao prazer e o bem-estar. A existência da área da saúde, de toda clínica e de toda terapêutica ocidental moderna, funda-se em uma moral do sofrimento. Mas no lugar de se pretender uma “ciência do fenômeno do sofrimento”, a patologia é tão somente uma ciência do sofrimento que queremos evitar. Desde sempre a patologia já pressupôs que o sofrimento é negativo e um mal a ser evitado, seja pela medicina curativa ou preventiva, pois a cada vez se quer curar ou prevenir um mal. Este moralismo como pressuposição sempre impediu que a patologia efetivamente se perguntasse “o que é sofrer?”. O ser do sofrimento permanece intocado. Por um lado, a saúde fica aos cuidados do cotidiano, nas mãos da publicidade e de toda ausência de legislação, por outro lado, as interpretações do sofrimento sustentam-se na separação entre o tratar o indivíduo segundo seu sofrimento e segundo a sua dor, o que se procura conhecer através da observação de sua afetação e sua queixa. Confunde-se a queixa e a afetação tanto quanto se confunde dor física e dor psicogênica, assim como sempre já se confundiu dor e transmissão nervosa da “dor” objetual. Mas isso não começa como uma tese, como uma separação teórica previa, senão começa com a própria relação pública, comum, apesar de implícita, numa espécie de consenso tácito na relação entre indivíduos em função da angustia de morte e do projeto de vida, desdobrado conceitualmente e cotidianamente simpatia ou aversão à presença do sofrimento, da dor, da doença no outro. O que se logra com isto é esconder a simpatia ou aversão diante do desespero ou angústia do outro com seu existir fático e finito no mundo. Neste sentido, não é a ciência da saúde que cria aquela separação, sequer é a patologia, a fisiologia ou a medicina que criam para si a noção de doença e saúde, mas antes eles apenas exprimem, em nível cotidiano, social ou político, aquilo que é constituinte do nosso próprio existir: a capacidade de suportar ou não, de assumir ou não uma atitude diante da morte e da descontinuidade angustiante da existência. Publicamente esta assunção não é possível, pois a morte, a doença, em suma, a finitude, é antes de tudo manifesta na singularidade de um indivíduo. Publicamente ela se torna algo, uma coisa ou objeto a ser combatido, excluído, tratado, cuidado, etc, conforme as diversas áreas, mas em todo caso nunca assumido. A descontinuidade da vida e sua possível ruptura são metafisicamente tomados como objetos de um gritante “não!”, mas com isto nunca se chega a compreender o que significa para o homem a negação do sofrimento. Passa-se ao largo desta “pulsão” por felicidade, satisfação e prazer, elas próprias vividas não por si mesmas, mas como modos de negar a infelicidade, a insatisfação e o sofrimento. Crê-se numa oposição por exclusão entre vida e morte, satisfação e sofrimento, e ignora-se como e porque negar o sofrimento já é afirmar a insatisfação.
Portanto, da moral da simpatia pelo sofrimento do outro, que faz deste outro uma coisa ou objeto de conhecimento moral, surge uma “aversão” ou antipatia à ruptura ou à descontinuidade existencial. A simpatia moderna pelo ser do doente é, por assim dizer, uma “patologia por antipatia”, uma aversão à existência. O desejo de curar todo sofrimento, o não saber sofrer, a negação da dor, em suma, a não compreensão do que significa ser possível tanto o bem estar quanto o mal estar, não é um phátos no sentido emocional, como um temor da morte, pois a ruptura com a continuidade da existência vivida é a perda do projeto onde se é remetido, ou melhor, retido na finitude do estar aí acontecendo, seja num bem estar ou mal estar. Neste sentido, a doença não é a presença de um mal, mas a presença da impossibilidade do estar já antes projetado de modo fechado. O ananismo e o daltonismo podem levar a sofrer por condições sociais e nem por isso é objeto de cura e tratamento; a cirurgia plástica pode ser objeto de exercício médico e nem por isso é um procedimento de cura; a gravidez é considerada normal e não só pode implicar em dores e desconfortos, como também é objeto de cuidado médico; a miopia é definida como privação e pode implicar em desconforto para muitos, porém em habilidade para pintores impressionistas. A cada vez a abertura ou fechamento de possibilidades não se reduz à doença ou a saúde, pois, inversamente, o homem saudável pode viciar-se e arriscar-se mais que o homem debilitado. A doença abre novos modos de estar, seja como a adaptação ao meio com sua melhoria de condições orgânicas, seja como re-edição de capacitações ou ainda como alguma privação que nem por isso é necessariamente negativa. Existencialmente, o sofrimento é tão positivo quanto o prazer, o bem estar tanto quanto o mal estar, pois um “bem” ou “mal” estar só são possíveis se antes de tudo se está de algum modo. O homem só é capaz de abusar da sua saúde com os mais variados vícios quando justamente já goza de suficiente bem estar para isso do mesmo modo que, quanto melhores os recursos da civilização, maiores os “males” que podem gerar. É o bem estar que projeta para si o mal estar e vice-versa.
Continua…